Réquiem pelo 4 de Abril

O Folha 8 decidiu “decretar” o dia 4 de Abril como o seu “feriado” de reflexão. Reflectir é preciso. Para todos? Não. Por alguma razão em 2018 e 2019 esta data que assinala a Paz (no sentido apenas do calar das armas) e a Reconciliação Nacional não contou, em Angola, com a presença do mais alto magistrado do MPLA/Estado, João Lourenço.

Em 2018, o Bureau Político do MPLA, partido no poder desde 1975, enalteceu a importância de José Eduardo dos Santos no alcance da paz em Angola, cujo 17º aniversário se assinalou ontem, 4 de Abril.

“Honra seja dada ao arquitecto da paz, camarada José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA, que, nos momentos mais adversos da história recente de Angola, soube manter a serenidade, impondo a vitória do bem sobre o mal e, desta forma, propiciar, com o seu alto sentido patriótico e aglutinador, uma genuína reconciliação entre irmãos, outrora desavindos”, lia-se na mensagem do partido, a propósito da comemoração do 4 de Abril.

Um ano depois, tudo na mesma e só muda o nome do arquitecto. Aliás, não está tudo exactamente na mesma. A embalagem está mais moderna, quando ao conteúdo, esse até parece ser pior.

As comemorações oficiais do dia da Paz e da Reconciliação Nacional do ano passado tiveram lugar em Malanje, com o acto central a ser orientado pelo vice-Presidente da República, Bornito de Sousa. Ausente do país em viagem privada, João Lourenço, Presidente da República desde 2017, não participou nas comemorações. Este ano voltou a estar ausente.

O conflito em Angola terminou após a morte, em combate, no Leste de Angola, a 22 de Fevereiro de 2002, de Jonas Savimbi, líder histórico e fundador da UNITA.

Durante praticamente três décadas, morreram cerca de meio milhão de angolanos, entre militares e civis, devido ao conflito armado.

“Angola é hoje, para bem dos seus filhos, uma Nação em paz e reconciliada, que não pretende voltar a trilhar os caminhos do ódio e da violência, onde cada cidadão deve ser um agente activo da tolerância e do amor ao próximo, para que nela seja construída uma sociedade de bem-estar, de progresso social e de desenvolvimento sustentável”, reitera o MPLA a propósito do dia da Paz.

Acrescenta que a consolidação da paz e da reconciliação nacional “são premissas fundamentais de toda a acção prática do MPLA”, que “continuará a bater-se pelo aprofundamento da inclusão política e social, para que Angola cresça de modo equilibrado, harmonioso e com equidade”.

O Bureau Político “reafirma a sua total confiança e encorajamento” a João Lourenço, “a quem o povo angolano depositou, por via do voto, confiança para fortalecer o Estado democrático de direito, diversificar a economia e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”.

Festejemos irmãos, mesmo de barriga vazia

O MPLA, com o seu brilhantismo habitual, diz que os angolanos são capazes de reconstruir o país, de criar condições para erradicar a pobreza e de promover o desenvolvimento e o bem-estar social.

Os angolanos são, sim senhor, capazes de tudo isso. Pena é que o regime não os ajude. Já lá vão 17 anos de paz total e, feitas as contas, poucos continuam a ter cada vez mais milhões e, é claro, milhões continuam a ter cada vez menos.

A constatação propagandística do MPLA, partido no poder desde 11 de Novembro de 1975, insere-se naquilo a que se convencionou chamar o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional.

O MPLA exorta os seus militantes, simpatizantes e amigos e todo os angolanos a transformarem as comemorações do 4 de Abril numa “verdadeira jornada de reflexão e de júbilo”.

Que o regime esteja em júbilo (assinala desde logo a rendição da UNITA) ainda vá que não vá. No entanto, aos angolanos resta eventualmente reflectir… de barriga vazia. E, exactamente por termos 20 milhões de pobres, é que o regime espera que as reflexões dos angolanos não sejam muito profundas.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que hoje, como ontem e certamente como amanhã, apenas um quarto da população tem acesso a serviços de saúde, que, na maior parte dos casos, são de fraca qualidade; que 12% dos hospitais, 11% dos centros de saúde e 85% dos postos de saúde existentes no país apresentam problemas ao nível das instalações, da falta de pessoal e de carência de medicamentos.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que 45% das crianças angolanas sofrerem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolano; que 80% do Produto Interno Bruto é produzido por estrangeiros; que mais de 90% da riqueza nacional privada é subtraída do erário público e está concentrada em menos de 0,5% de uma população; que 70% das exportações angolanas de petróleo tem origem em Cabinda.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.

O MPLA pede aos angolanos que fortifiquem os laços de união em prol da busca de consensos para o futuro do país, a consolidação da unidade nacional e o aprofundamento do processo democrático em curso.

Essa do aprofundamento do processo democrático em curso é mesmo brilhante. Aliás, nem sequer haveria necessidade de o aprofundar. Basta ver que, por exemplo, o ex-presidente da República, José Eduardo dos Santos, esteve no poder 32 anos sem nunca ter sido eleito e que João Lourenço foi “eleito” devido a carradas de batota que a máquina do MPLA/Estado colocou ao seu serviço.

“A paz tem permitido ao nosso povo o usufruto do direito à segurança, à tranquilidade, à estabilidade e à livre circulação em todo o território nacional e tem facilitado o processo de reconstrução e de criação de infra-estruturas para o desenvolvimento, o que tem sido constatado, de forma entusiasta, por todos os de boa-fé, cientes de que a paz veio para ficar e de que o futuro será infinitamente melhor do que o passado”, lê-se em todas as declarações que, ao longo dos últimos 17 anos, a máquina propagandística do regime produziu e divulgou por todos os cantos e esquinas.

Pois é. Tudo isso é visto, sentido, apoiado e reconhecido pelo menos por 70 por cento da população que, recorde-se, continua na miséria.

“O processo de reconciliação nacional, que continua a decorrer de forma sólida, não obstante as inúmeras tentativas de o dificultar, permite que os angolanos acreditem no futuro e tem constituído um factor importante para a consolidação da economia e o seu notado crescimento, viabilizando o processo de reconstrução nacional e a paulatina melhoria das condições de vida do nosso povo”, sublinhava em 2011 o Secretariado do Bureau Político do MPLA.

O MPLA, o regime, José Eduardo dos Santos, João Lourenço (são tudo sinónimos) não diz mas, importa reconhecê-lo, as “inúmeras tentativas de dificultar” todo o processo fazem com que, no mínimo, o MPLA precise aí de mais uns 30 anos para tornar o país num Estado de Direito.

A UNITA passou de adversário a tapete

O Governo de Angola/MPLA considerou que a paz é “uma conquista de todos os angolanos”, mas a UNITA defendeu que o calar das armas, há 17 anos, ainda não se reflecte na condição social e económica das famílias.

Falando aos jornalistas após o içar da bandeira de Angola na Fortaleza de São Miguel, em Luanda, o ministro do Interior angolano, Ângelo da Veiga Tavares, lembrou o papel do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, na pacificação do país, desde o fim do conflito e cujo “espírito de perdão” foi “importante para a paz”. “O alcançar da paz não foi apenas uma tarefa das forças de Defesa e Segurança, mas também do povo angolano”, sublinhou.

João Ernesto dos Santos “Liberdade”, ministro dos Antigos Combates e Veteranos da Pátria (do MPLA) considerou que o “4 de Abril” de 2002 constitui uma data “muito importante” e com um “significado muito diferente de outras” e aconselhou as novas gerações a seguirem o exemplo dos que estabeleceram a paz em Angola.

No mesmo tom, o Bureau Político do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) indicou que, 17 anos depois, “constata, aplaude e encoraja o facto de a sociedade angolana estar mais aberta”, em que os seus cidadãos “têm mais liberdade de expressão, de reunião e de associação e em que existe maior liberdade de imprensa”.

Já a UNITA, maior força da oposição que o MPLA ainda permite que exista, e também numa declaração alusiva à efeméride, considerou que o calar das armas “ainda não se reflecte na condição social e económica de muitas famílias”.

“Há muitas famílias que se conformam com elevados índices de pobreza, agravados pelo desemprego que afecta a juventude e os ex-militares, em particular”, sublinhou o secretariado executivo do Comité Permanente da Comissão Política da UNITA, que reclama o “cumprimento cabal” dos compromissos assumidos pelo Governo com a UNITA com vista à paz efectiva em Angola, tendo como base os acordos assinados em Bicesse, Lusaca e Luena.

“Longe de celebrarmos apenas mais uma data do calar das armas, a UNITA considera que se impõe uma profunda reflexão sobre as bases e pressupostos em que assentaram os precedentes que vieram a culminar com o Memorando de Entendimento do Luena (acordo de 2002), com vista à paz efectiva e duradoura, factores imprescindíveis na construção e consolidação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito”, lê-se na declaração.

“A celebração remete para a reflexão de que a paz social passa, inevitavelmente, pela boa governação, com a adopção de políticas públicas viradas para a resolução dos problemas candentes das famílias e das suas comunidades, mormente no que tem a ver com a distribuição justa e equitativa do rendimento nacional, educação e saúde de qualidade, bem como na igualdade de direitos e oportunidades para todos singrarem na vida, independentemente da sua condição política ou social”, refere.

Despesa social “per capita” caiu 19% entre 2016 e 2018

A Organização Não Governamental (ONG) Comité para o Jubileu da Dívida disse que Angola é um dos três países em desenvolvimento que mais cortou na despesa social desde a crise económica, com um corte de 19%.

“Nos 15 países com os mais altos níveis de pagamento da dívida, em dez deles a despesa pública per capita caiu entre 2016 e 2018”, escreveu o economista-chefe desta ONG britânica, apontando que “entre os 15 países, a despesa pública caiu, em média, 4%, com os maiores cortes a ocorrerem no Egipto, Camarões, Angola e Mongólia, sendo que todos estes países têm um programa com o Fundo Monetário Internacional”.

De acordo com o estudo feito por esta ONG com base nos números comparáveis do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a despesa pública calculada em função do número de habitantes (per capita) desceu 19% em Angola entre 2016 e 2018, sendo que o pagamento da dívida pública leva 57% das receitas fiscais no segundo maior produtor de petróleo na África subsaariana.

“Estes números mostram que a despesa pública cai nos países com alto nível de endividamento, o que torna ainda mais difícil o caminho para atingir os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável”, escreve o economista Tim Jones.

O estudo mostra que os pagamentos da dívida subiram 85% entre 2010 e 2018 nos países em desenvolvimento: “os pagamentos de dívida externa entre os 124 países em desenvolvimento para os quais há dados disponíveis aumentaram de 6,6% da receita fiscal, em 2010, para 12,2% em 2018, um aumento de 85%, o nível mais alto desde 2014, quando esses pagamentos representavam 13,8% da receita dos governos”, lê-se no estudo.

Este rápido crescimento “surge depois de um aumento significativo nos empréstimos devido às baixas taxas de juro a nível global”, o que fez com que “o montante dos empréstimos aos governos dos países desenvolvidos tenha duplicado, de 91 mil milhões de dólares por ano em 2008, para 424 mil milhões em 2017”.

Os dados apresentados por esta ONG mostram que Angola tinha, em 2018, 57% das suas receitas destinadas aos pagamentos de dívida externa, ao passo que Moçambique reservava 25% da sua colecta fiscal para pagar a dívida, tendo reduzido o investimento per capit’ em 5% entre 2016 e 2018.

O endividamento dos países africanos no seguimento da descida dos preços das matérias-primas, em conjunto com o aumento das taxas de juro e desvalorização das moedas nacionais, é um dos aspectos que tem dificultado o desenvolvimento económico, de acordo com os analistas e as instituições financeiras internacionais.

Folha 8 com Lusa

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